Mudanças tectônicas: Latin America Digital Report 2023
+ Entrevista com Julio Vasconcellos e aprofundamentos.
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Uma tradição anual do mercado de tecnologia na América Latina é o Latin America Digital Report, organizado pelo fundo Atlantico. Como sou um grande fã de pesquisas proprietárias e profundas, eu venho cobrindo o relatório anualmente desde o nascimento desta newsletter e usando como referência em diversos artigos.
Em 2023, tenho a oportunidade de fazer algo diferente: tive acesso privilegiado e pude fazer uma entrevista sobre alguns pontos do relatório com o Julio Vasconcellos, fundador do Atlantico.
Eu recomendo a leitura intencional e completa do report. Você pode encontrar o artigo clicando aqui ou baixando o pdf abaixo.
Para começar este artigo, vou trazer alguns dos principais findings do estudo na minha percepção:
O que senti após ler o relatório pela primeira vez foi um otimismo embasado. O relatório do Atlântico parte da premissa de que há 5 mudanças tectônicas na América Latina que geram forças de transformação:
a) A importância da LatAm para o mundo: Devido ao tamanho da região e ao fato de sermos um dos principais produtores de alimentos do mundo, com commodities essenciais como metais em abundância e energia limpa, estamos nos tornando um dos centros de gravidade do mundo moderno.
b) Democratização digital: Hoje, é seguro afirmar que a população digital na LatAm reflete a população real. Conquistamos a proeza de digitalizar uma parcela significativa, e isso representa uma das maiores oportunidades para expandir soluções de tecnologia pela região.
c) Renovação do espírito empreendedor: Mesmo após 18 meses bastante desafiadores, os empreendedores nunca estiveram tão bem preparados e entusiasmados com o que o futuro reserva. Provamos, como região, possuir um ecossistema resiliente em termos de novos investimentos e capital humano.
d) Dinheiro digital: Evoluímos do dinheiro físico para o mundo digital. Ter o capital circulando de forma digital é um requisito fundamental para o amadurecimento do ecossistema. Isso levará nosso inovador banco central a fomentar ainda mais a competição e abrir mais espaço para a inovação. Prevejo que cada vez mais teremos análises de crédito refinadas, mais formas de financiamento saudáveis e, quem sabe, até mesmo smart contracts através do Drex, além das inovações no ambiente empresarial.
e) AI. Sem dúvida, estamos superestimando o que ocorrerá em 2 anos, porém subestimando em 10 anos. A AI é a revolução mais impactante do momento, tendo a capacidade de aumentar a produtividade em setores-chave do país, como educação e saúde. É evidente que em menos de 1 ano após o lançamento do Chat-GPT3, empreendedores já estão buscando criar empresas mais eficientes aderindo a essas novas ferramentas.
Vamos aos slides:
Inclusão digital. Há uma frase do Shu Nyatta que utilizo frequentemente: "Tecnologia na América Latina é mais sobre inclusão do que disrupção." Este gráfico aponta precisamente para essa tendência: enquanto a curva de maturidade digital das classes mais altas atingiu o seu pico, nós temos vivenciado nos últimos anos o crescimento exponencial da inclusão das classes C, D e E. Isso tem gerado oportunidades para startups que trabalham em prol desse perfil de usuários. Uma das maiores forças propulsoras para o crescimento do mercado de tecnologia na América Latina foi justamente a inclusão dessa parcela da população. É por isso que estamos presenciando a ascensão de empresas como Nu, Shein e Shopee.
Os latinos americanos adoram tecnologia. Por bem ou por mal, somos campeões mundiais em tempo diário de uso de internet, consumo de rede social e uso de entretenimento, o que nos posiciona como líderes globais nos rankings. Isto faz com que sejamos early adopters de tendências digitais, especialmente no B2C. Um bom exemplo para sustentar essa hipótese é o Pix no Brasil, que em 1 ano atingiu mais de 50% da população local. A minha expectativa é que o fato de sermos tão abertos na adoção da tecnologia a nível pessoal leve a uma maior adoção no âmbito corporativo, onde os processos ainda são majoritariamente offlines e manuais.
Remédio amargo, mas com capital humano disponível. 74% dos fundadores realizaram demissões na América Latina, o que demonstra a dificuldade dos últimos 18 meses e o quão superdimensionadas estavam as estruturas. O lado positivo é que as startups continuam despertando interesse por parte dos estudantes, o que é essencial para o progresso do ecossistema. Esse fluxo de capital humano, que está mais bem preparado e está atraindo os melhores talentos, é um dos aspectos que gera maior otimismo com relação à região.
Estabilização do capital para financiar startups. Como mencionado por Julio (mais adiante), no passado o capital frequentemente se esgotava, enquanto agora ele se ajusta. Mesmo diante de momentos tão desafiadores, o patamar de cerca de 1 bilhão de dólares em investimentos na região se manteve, demonstrando a resiliência do ecossistema.
Mais com menos. Quando consideramos os resultados em relação à quantidade de capital investido, a América Latina demonstra uma eficiência maior do que outras regiões emergentes, como a Índia e o Sudeste Asiático. Este slide confirma que estamos na dianteira em termos de captura e geração proporcional de valor.
A Era Vertical. Trazendo à tona tendências de longo prazo relacionadas à redução dos custos de desenvolvimento de software, a facilidade de incorporar serviços financeiros e o poder da computação em nuvem, estamos diante de um cenário propício para a expansão de softwares dedicados a setores ou casos de uso específicos.
Uso de AI. Menos de 1 ano após o nascimento do chat gpt 3, mais de 69% dos respondentes utilizam soluções para desenvolvimento de software. Isto mostra como essa nova ferramenta já faz parte do dia-dia, mesmo em suas versões iniciais. Espera-se que o impacto seja positivo para (a) construção mais ágil (b) melhor qualidade de software (c) maior eficiência.
Entrevista com Julio Vasconcellos
L: Julio, qual o fato do Latin America Digital Report de 2023 que te fez repensar ou reforçar alguma convicção?
J: Tive um novo ângulo sobre fatos antigos na questão da fotografia demográfica de quem é o usuário de internet hoje. O grande crescimento da última década foi resultante do crescimento da população de baixa renda, da classe C, D. Então hoje, o retrato de quem está online no país é um retrato da população. Esta realidade é diferente de 5-10 anos atrás, quando quem estava online era uma população mais rica da América Latina. Isto gera um impacto e um exemplo que temos é o crescimento de players como a Shein, cuja proposta de valor é mais focada no preço, o que torna acessível para a maior parte da população. Esta mesma tendência se reflete na bancarização: hoje a fatia dos bancarizados, em geral, inclui também as camadas com menor poderio econômico. Estes argumentos reforçam a perspectiva do quão resilientes são essas forças de inclusão que estão propulsionando o crescimento da área de tecnologia.
L: E quais são os fatores que viabilizam a emergência dessa tendência?
J: Se a gente pensar nas duas grandes forças que viabilizam isso, uma é acesso ao capital financeiro. Mesmo que a gente tenha vivenciado uma queda grande de acesso ao venture capital - que se estabilizou agora nos últimos quatro trimestres e embora hoje tenhamos uma parcela maior vindo de venture debt do que a gente teve no passado, mas ainda assim, independente dessa fatia, a gente tem um nível hoje de acesso a capital relativamente saudável e, na minha opinião, suficiente para continuar alimentando a inovação.
Além disso, o segundo ponto crucial é o acesso ao capital humano. No Atlantico, conduzimos regularmente pesquisas com centenas de estudantes nas principais faculdades. Perguntamos a eles sobre suas aspirações profissionais após a formatura. É notável que, apesar das muitas notícias negativas envolvendo a tecnologia nos últimos anos, incluindo quedas no valor das empresas e das ações, a resiliência dessa nova geração de grandes talentos interessados em ingressar no setor tecnológico permanece intacta. Acredito sinceramente que esses dois fatores irão estabelecer uma base sólida para um crescimento contínuo, refletindo a trajetória que temos observado nos últimos 20 anos.
L: Julio, uma das sessões que mais gostei é a da renovação do espírito empreendedor. Você foi empreendedor, só que em outro momento de mercado. O que é tão diferente do mercado de 2010s para o de 2023 na sua perspectiva do empreendedor?
J: O mundo era completamente diferente. Estamos falando hoje sobre o novo momento de mercado, no qual tivemos acesso a mais ou menos 1 bilhão de dólares por trimestre. Na minha época como empreendedor, tínhamos um décimo disso por ano, o que por ordem de grandeza já explicita o momento tão diferente. Na nossa época, éramos obrigados a realmente fazer muito mais com menos por falta de capital. O mercado de investimentos praticamente acabava enquanto hoje ele ajusta. Continua tendo capital, tanto financeiro quanto humano, para os empreendedores. Isto mostra o quanto o ecossistema está resiliente.
Uma faceta positiva a ser destacada é a eficiência demonstrada pelos pioneiros desse ecossistema: mesmo com recursos limitados, eles conseguiram erguer empresas gigantes que geraram um valor imenso.
L: Um dos gráficos que adoro utilizar é o “Latin America Value Creation”, que destaca o potencial econômico da região. Por que a América Latina está tão aquém da Índia e da China nesse aspecto?
J: A minha visão é que é uma questão de timing. Tomemos como exemplo a China, onde há muito mais de uma década tanto o acesso ao capital humano quanto ao financeiro para o crescimento das startups começou a se estabelecer. Nós, por outro lado, só começamos a construir uma estrutura de mercado similar entre 2010 e 2015, enquanto isso já acontecia na China há uma década. Começamos atrasado, mas estamos crescendo rápido e fazendo esse catching up. Essa visão encontra respaldo nos dados, basta observar as curvas de crescimento do investimento em VC em relação ao PIB nos Estados Unidos e na China, e compará-las com a América Latina.
Essa realidade também ecoa uma frase que gosto bastante, do autor de ficção científica William Gibson: "O futuro já está aqui, ele simplesmente não está uniformemente distribuído."
L: Não querendo adentrar em esferas políticas, mas é interessante notar que tanto a democratização digital quanto o sistema de pagamentos no Brasil parecem resultar de colaborações bem-sucedidas entre o setor público e privado. Você tem alguma teoria sobre por que esses projetos foram tão bem-sucedidos no Brasil?
J: Essa questão do porquê que a regulação no sistema financeiro tem funcionado tão bem reflete muito o perfil desse regulador, desse agente público que é o Banco Central. Ele tem uma agenda muito agressiva de inovação para levar a maior competição e maior acesso ao sistema financeiro e não teve medo de usar esse poder regulatório para atingir os seus objetivos que são muito nobres. Grande parte do sucesso depende do regulador, tanto da figura do Roberto Campos Neto e do antecessor dele cujo o foco também esteve na inovação, quanto na vontade e no poder de colocar em prática medidas que muitas vezes iam contra o status quo e resultou neste sucesso.
Acho que muitas vezes quando você tem que encontrar um acordo político você possivelmente tem esse risco de tentar encontrar o meio termo que acaba não sendo bom para ninguém. A gente testemunhou muito isso no México agora e no fracasso na minha visão que foi o lançamento do Pix dele que se chama o Cody lá. Eles tentaram encontrar o meio termo e com isso o rollout lá não foi nem perto do sucesso que a gente teve aqui no Pix no Banco Central e está tendo agora via o Open Finance.
Obrigado Atlantico pelo convite e parabéns pelo ótimo relatório.
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Disclaimer: Esse artigo reflete as minhas opiniões pessoais e não expressam necessariamente a visão da gestora pela qual eu trabalho.