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Meus caros leitores,
A Valve é a empresa misteriosa mais impressionante do mundo. Não só revolucionou a forma como conteúdos são distribuídos, mas também como os jogos são feitos e como empresas são geridas, de forma muito autoral. A empresa é a produtora de grandes hits como Half-Life e Counter Strike, além de dona da plataforma Steam, que é a App Store dos Games.
O artigo de hoje marca a inauguração do Sunday Dive, um novo espaço no qual mergulho e aprofundo nas histórias de empresas que merecem ser contadas. Ele é composto pelo artigo e pelo podcast num formato à la 'Acquired', que você pode ouvir e assistir aqui.
Escute o episódio completo sobre a história da Valve no Spotify, Youtube ou Apple Podcast.
Se você só tem alguns minutos, aqui está o que founders, investidores e operadores devem saber sobre a Valve.
Obsessão pela qualidade: Desde a origem, a Valve prefere lançar poucos produtos de excelência — mesmo quando o caminho fácil seria escalar volume. Essa disciplina constrói reputação, pricing power e fidelidade de longo prazo.
Talentos como forma de multiplicar o impacto. A Valve só contrata colaboradores com altíssimo nível de especialidade em um tema que também são generalistas para assim colaborar fora da sua expertise. É um dos motivos para ser a empresa com maior receita por headcount do mundo de tecnologia (cada colaborador gera US$19 milhões de receita). Além disso, a empresa tem um modelo de gestão sem chefes.
Revolução do modelo de negócios: quando as distribuidoras passaram a tomar 70% da receita, a Valve inverteu o jogo ao autopublicar seus títulos por meio da plataforma Steam.
O poder das plataformas: Orquestrar demanda — e não só criar oferta — captura valor exponencial via efeitos de rede. É por isso que Valve, Apple, Google e outras gigantes operam como infraestruturas onde terceiros constroem.
Conhecer os usuários: Skins, mods e até aquisições (Counter-Strike, Team Fortress) nasceram de ouvir usuários hardcore em fóruns. Mantendo o canal aberto, a empresa enxergou ondas — F2P, itens cosméticos — anos antes do mercado. Até hoje se espera que todo colaborador participe dos fóruns.
Presença bilateral EUA ↔ China: O Steam opera legalmente nos dois maiores mercados de consumo de games do planeta, algo raro para empresas ocidentais. Lição: diversificar jurisdições antes de precisar de um salva-vidas regulatório.
Antes de avançar para o conteúdo, queria deixar um recado:
O Sunday Dive de hoje é oferecido pela Onfly.
Um traço em toda história da Valve é o sucesso ao fazer diferente. Esse mesmo DNA está na Onfly, que revolucionou o setor de viagens corporativas através de software. Se você quiser evoluir a experiência do seu funcionário e da sua empresa, você deveria conferir o produto da Onfly. Basta acessar o link abaixo.
A História da Valve
O Acaso que Mudou Tudo
A história da Valve começa com uma visita que, à primeira vista, parecia totalmente trivial.
O ano era 1982 e Gabe Newell (cujo apelido é “Gaben”), então estudante de Harvard, foi visitar o irmão em Seattle durante as férias. No entanto, a temporada não saiu como o previsto, seu irmão não parava de trabalhar e mal conseguia dar atenção a visita. Ele trabalhava em uma empresa ainda desconhecida na época, chamada Microsoft.
Sem ter o que fazer, Gaben começou a passar os dias no escritório da Microsoft. Ele ficou tanto tempo por lá que acabou irritando Steve Ballmer, que disse: "Se você vai ficar aqui, pelo menos trabalhe.”
Essa bronca despretensiosa foi o começo de tudo. Gaben largou o curso de Ciências da Computação em Harvard no seu terceiro ano e tornou-se funcionário número 281 da Microsoft - antes mesmo do lançamento do Macintosh, o primeiro computador pessoal.
“Em 3 meses aprendi mais do que todo meu período em Harvard”, disse Gaben em uma entrevista em 2017.
Esta experiência foi transformadora. Treze anos depois, ele:
Fez parte do projeto que lançou o Windows 1.0 no mercado;
Aprendeu como funcionavam os sistemas operacionais por dentro e como hardware e software se integravam;
Esteve na fronteira da inovação que definiria os rumos da tecnologia nas décadas seguintes;
Conheceu muita gente boa;
Ficou milionário.
E, talvez, o mais importante: conheceu Mike Harrington, programador brilhante que chegou como o funcionário de número 1.500 e tornou-se, anos depois, seu co-founder na Valve.
Em 1996, numa conversa casual no almoço, Harrington confessou a Newell: "Quero sair da Microsoft e montar uma empresa de games."
"Eu também quero sair da Microsoft", respondeu Newell. "Eu também quero montar uma empresa de games."
E assim, no mesmo dia - 26 de agosto de 1996 - Newell casou-se e fundou a Valve.
Fase 1: A Produtora de Jogos (1996-2003)
O Trio de Desafios Épicos
Criar um jogo em 1996 era como tentar escalar três montanhas diferentes ao mesmo tempo. Cada uma representava um projeto épico por si só, e a maioria das empresas falhava em pelo menos uma delas. A Valve precisaria conquistar todas as três.
Primeiro desafio: A Tecnologia. Desenvolver um "engine" - a engenharia complexa por trás da movimentação, física e comportamento do jogo. Uma analogia moderna seria uma empresa de IA desenvolvendo seu próprio modelo de linguagem do zero. Era a infraestrutura invisível que determinaria se o jogo seria revolucionário ou apenas mais um.
Segundo desafio: O Talento. Encontrar desenvolvedores de jogos em 1996 era quase impossível. A indústria era minúscula, a maior parte do talento estava concentrada na Ásia, e não existia LinkedIn para mapear quem tinha as habilidades certas. Era como procurar astronautas numa época em que poucos sabiam que o espaço existia.
Terceiro desafio: A História. Criar uma narrativa que transformasse código em emoção, que fizesse jogadores se importarem com pixels na tela. Naquele momento, games eram sinônimo de entretenimento simples como o Tetris, ou seja, o storytelling era irrelevante.
O Homem que Resolveu Dois Problemas
Um homem foi determinante para que a Valve resolvesse tanto o problema de tecnologia quanto o de talentos: Michael Abrash.
Abrash foi a primeira pessoa que Harrington procurou para ser co-fundador, antes mesmo de conversar com Gaben. Ele recusou. Entretanto, mesmo não entrando como sócio, tornou-se peça fundamental da história.
Abrash era lenda na Microsoft e figura central na iD Software, empresa que havia desenvolvido o revolucionário Quake Engine. Para contextualizar o que era e sua importância: o Quake Engine foi o primeiro motor gráfico totalmente 3D da história, permitindo movimentação completa em seis graus de liberdade. Enquanto jogos anteriores simulavam tridimensionalidade, o Quake renderizava geometria verdadeiramente 3D com iluminação dinâmica e física avançada. Era o equivalente ao GPT-4 no mundo de games em 1996 - tecnologia anos à frente da concorrência. Em troca dessa engine, a iD capturava uma fatia dos royalties (15% em média).
Abrash ofereceu duas soluções:
Para o problema da tecnologia, Abrash foi direto: "Não tem porque vocês criarem engine do zero. Usem o Quake Engine."
Numa demonstração extraordinária de confiança, entregou a Newell e Harrington um disquete com o engine completo. Sem contrato assinado. Apenas baseado na relação pessoal construída na Microsoft. Esse disquete se tornaria a base tecnológica do Half-Life.
Para o problema de talentos, Abrash entregou algo ainda mais precioso: uma lista de pessoas que haviam criado os principais "mods" - modificações de jogos existentes feitas por pura paixão.
Eram pessoas que "viviam no porão de casa" e faziam isso porque realmente eram apaixonadas. Não ganhavam dinheiro. Era 100% por amor à arte. Queriam ver aquela realidade diferente que imaginavam no jogo se tornando real para outras pessoas.
A contratação mais icônica exemplifica essa filosofia: um gerente de uma casa de waffles na Flórida que havia reinventado a inteligência artificial por trás do comportamento dos personagens nos jogos. Quando recebeu a ligação da Valve, não acreditou: "Vocês vão me contratar e estão comprando a passagem para Seattle? Isso não faz o menor sentido."
Mas fazia. Essas pessoas tinham algo que dinheiro não comprava: paixão genuína e compreensão intuitiva do que tornava jogos emocionantes.
O terceiro desafio - desenvolver a história - encontrou solução no momento mais inesperado.
Mike Harrington conta que Newell chegou um dia no escritório lendo "The Mist", de Stephen King. Um livro sobre monstros com pessoas fazendo compras no supermercado, um mix de horror infiltrado no cotidiano. A tensão psicológica única do livro - a sensação de que o familiar pode se tornar aterrorizante a qualquer momento - foi inspiração e tornou-se o DNA do Half-Life.
O objetivo era traduzir essa atmosfera para um jogo de tiro em primeira pessoa. Criar a sensação de que a ciência e a rotina podem se transformar em pesadelo sem aviso.
O Momento do Desespero
Com tecnologia, talentos e conceito definidos, começaram a desenvolver o Half-Life. A demo foi tão impressionante que ganhou o prêmio de melhor jogo de ação antes mesmo de estar pronta. O hype era real. As expectativas, estratosféricas. Mas quando jogaram o produto final, algo devastador aconteceu.
O jogo não fazia sentido. Cada nível havia sido projetado por uma pessoa diferente, sem coerência narrativa. Era uma colcha de retalhos brilhante em partes isoladas, mas desconectada como experiência. Somava-se o fato de que o Gaben havia prometido coisas que seriam impossíveis de serem desenvolvidas naquele momento, como é natural de todo founder visionário.
Relatos contam que Gaben "botou a mão no cabelo" em desespero completo: "Isso não vai dar certo, isso não vai funcionar." Eles pararam a empresa por dois dias inteiros.
"Todo mundo vai jogar", decretou Newell. Forçaram todos os funcionários a jogar o produto completo. A realidade era inescapável: tinham resolvido perfeitamente as etapas 1 e 2, mas falhado na 3.
A solução foi radical: recomeçar do zero. Por quatro vezes adiaram o lançamento.
A Sierra (distribuidora) pressionava pelo lançamento. Afinal, já havia hype e expectativa do mercado. O dinheiro estava saindo do bolso dos fundadores. Monica Harrington, ex-esposa do co-fundador, relatou que o momento foi de extrema tensão financeira e emocional.
Mesmo assim, tomaram a decisão mais importante: qualidade sobre cronograma. "Vamos reconstruir" tornou-se o mantra.
Foi nesse momento que introduziram roteiristas de ficção científica para criar uma narrativa coerente - algo inédito em jogos de tiro.
Quando Half-Life finalmente chegou ao mercado em novembro de 1998, revolucionou a indústria. Foi o primeiro jogo a combinar storytelling cinematográfico com gameplay de tiro em primeira pessoa. Vendeu mais de 9 milhões de cópias nos primeiros cinco anos.
Half-life foi o primeiro grande jogo da história dos PCs e nos deixa duas grandes lições: a primeira é que o foco na qualidade é recompensador. E produtos de qualidade são frutos de empresas de qualidade, que por sua vez, tem retornos muito superiores aos seus concorrentes, como Charlie Munger reafirmou durante toda sua vida.
O outro insight é sobre fazer algo diferente. Como relatado no Wall Street Journal em 1998, o hit da Valve veio da capacidade de contar uma história através do jogo, o que não era norma na época. Dificilmente alguém se destacará por fazer mais do mesmo. Se você fizer algo que as pessoas querem e que é diferente do que os concorrentes querem, o sucesso é provável.
Os M&As das Comunidades
Um dos pilares desde sempre na Valve era uma crença contraintuitiva: os melhores talentos não estavam necessariamente dentro da empresa. Eles estavam espalhados pelo mundo, criando por pura paixão em seus computadores pessoais.
A comunidade gaming é "aberta" - o que significa prover a capacidade para que usuários criem variações e até comercializem suas criações através de SDK (Software Development Kit). Half-Life incluía um SDK completo - editores de mapas, ferramentas de programação, bibliotecas de código e documentação técnica detalhada. Era como entregar às pessoas o poder de reescrever as regras físicas do universo que você havia criado.
Trazendo uma analogia moderna: imagine se você pudesse pegar o ChatGPT, modificar suas respostas, adicionar funcionalidades específicas e até vender essas versões customizadas para outros usuários. É exatamente isso que o SDK permitia no mundo dos games de 1998.
Ao liberar o SDK, a Valve transformou fãs apaixonados em um departamento de P&D global e gratuito.
Enquanto a empresa focava em suas prioridades internas, milhares de desenvolvedores ao redor do mundo experimentavam possibilidades que nem os próprios criadores do Half-Life haviam imaginado.
A Grande Arbitragem: De Hobby a Império
Entre 1999-2000, a Valve implementou algo inédito na indústria: identificar modificações excepcionais criadas por fãs e contratar equipes inteiras. Não era apenas sobre comprar tecnologia - era sobre absorver paixão, talento e visão já validados pelo mercado.
A estratégia era uma arbitragem perfeita:
Para os criadores: transformar hobby em carreira dos sonhos
Para a Valve: adquirir inovação já testada e aprovada pela comunidade
Para os jogadores: ver suas modificações favoritas ganharem recursos e suporte oficial
Caso 1: Team Fortress (1999) - O Primeiro "Acqui-Hire" da História dos Games
Um grupo de desenvolvedores havia criado um jogo cooperativo baseado em classes (soldado, engenheiro, espião) que rodava em cima do Quake Engine e o transformava num jogo multiplayer, que foi um sucesso absoluto.
Quando a Valve percebeu o potencial, trouxe tanto o time quanto o jogo para dentro da empresa. O projeto "voluntário" se tornou oficialmente um jogo da Valve e valeu muito a pena, com Team Fortress ganhando como melhor jogo online logo após a incorporação, além dos talentos que desenvolveram o jogo (gratuito pré Valve) como membros do time. Ainda hoje, Team Fortress tem mais de 800 mil jogadores mensais.
Caso 2: Counter-Strike - De Universitários a Fenômeno Global
A história mais impressionante começou com dois universitários - Minh Le e Jess Cliffe - que haviam criado um mod tático de tiro que invertia completamente a fórmula tradicional dos games.
Em vez de jogador contra máquina, eram duas equipes de humanos reais competindo em rounds estratégicos. Terroristas vs. Contra-terroristas.
O timing foi perfeito: quando a banda larga se democratizou, o mod explodiu em popularidade e se tornou um dos primeiros grandes jogos multiplayer da história - representado inclusive no fenômeno das Lan Houses no Brasil.
A Valve realizou o mesmo processo que havia feito com Team Fortress: adquiriu tanto o time quanto o jogo. Um dos fundadores ainda estava na universidade e inicialmente trabalhou como estagiário enquanto terminava os estudos.
Resultado: Counter-Strike ainda é hoje um dos 5 jogos mais jogados do mundo, impactando para sempre a cultura multiplayer global.
Este jeito aberto trouxe a comunidade para perto.
Fase 2: Criador e Distribuidor
O sucesso do Half-Life e dos outros jogos da Valve trouxeram uma percepção frustrante: quem mais ganhou foi a Sierra, a distribuidora, ficando com 70% da receita. No mundo pré-internet, essa era a realidade cruel - quem controlava a distribuição física controlava os lucros, afinal, era impossível chegar no consumidor sem passar por uma loja física, que por sua vez comprava de um distribuidor.
Como escrevi em Quem Gera a Demanda Captura o Valor: “Se você tentasse fazer algo independente antes da internet você nunca teria alcance, pois o único jeito dos consumidores te acharem seria através de um canal relacionado ao distribuidor. Ou seja, os produtores, os reais detentores do talento, tinham poder limitado.”
O problema era grande como modelo de negócios: A Valve não capturava quase nenhum valor - 70% ficava para Sierra, 15% para a iD (engine). Além disso, a Sierra detinha os direitos de propriedade intelectual do Half-Life.
Imagine: você não ganha dinheiro e seu IP está comprometido. O que fazer?
Renegociar.
A Valve decidiu jogar pesado. Começaram a pressionar a Sierra com uma ameaça que parecia insana: se não renegociassem os termos, a empresa simplesmente pararia de fazer jogos para sempre.
Como Mike Harrington relembrou anos depois: "A Valve nunca mais lançaria outro jogo. Não era uma ameaça vazia - nós não íamos assumir todo o risco para enriquecer outras pessoas. Além disso, eu sabia que o Gaben tinha ideias interessantes que não tinham nada a ver com jogos."
Esta pressão deu certo e eles conseguiram reter o IP da Half-life novamente e isso fortificou a ideia de criar um caminho diferente. Acabou que um acordo foi selado e a empresa entendeu que o destino seria em ter os direitos mais bem atrelados.
Mas eles já estavam olhando para frente. Em meio à batalha contra a pirataria, a Valve tomou uma decisão que pareceria menor na época, mas que se revelaria o trunfo secreto de toda a estratégia futura.
Ao criar um sistema de autenticação para combater a pirataria do Half-Life em 1999, algo inesperado aconteceu: eles passaram a conhecer seus usuários de uma forma que nenhuma empresa de games havia conseguido antes.
Era mais que um banco de dados - era uma janela para o futuro da indústria.
Por meio desse sistema, que exigia autenticação online para jogar Half-Life, a Valve fez uma descoberta que mudaria tudo: muitos jogadores já tinham acesso à internet de alta velocidade. Em 1999, essa era informação privilegiada. A banda larga ainda estava se democratizando, mas seus jogadores estavam na vanguarda da conectividade.
A Valve entendia que o futuro era o auto-distribuição e para isso trouxe uma pessoa central: Scott Lynch era executivo da Sierra Studios e havia sido responsável por criar justamente a área que fazia a distribuição de jogos como Half-Life. Se você quer revolucionar um modelo de negócio, nada melhor do que trazer a pessoa que mais entende dele.
Em janeiro de 2000, ele chegou à Valve. A contratação revelava um princípio que sempre foi central na empresa e que está escrito no livro para novos funcionários:
“Contratar bem é a coisa mais importante do universo. Nada chega perto. É mais importante que respirar”.
O novo contrato com a Sierra garantiu direitos de distribuição online, culminando no lançamento do Steam em setembro de 2003. Inicialmente era apenas um "atualizador" do Counter-Strike - resolver problemas de pirataria e patches quebrados.
A experiência inicial foi terrível. Usuários odiavam instalar "mais um programa" obrigatório. A interface era confusa, o código de ativação complexo. As reclamações eram constantes.
Mas Gaben, com sua experiência em sistemas operacionais desde a Microsoft, enxergava além das críticas: estava criando a infraestrutura que conectaria todos os elementos do ecossistema gaming.
Em novembro de 2004 veio o teste definitivo. Half-Life 2, possivelmente o jogo mais aguardado da década, foi lançado com uma exigência: para jogá-lo, seria obrigatório usar o Steam.
O resultado validou a visão. Half-Life 2 tornou-se o maior jogo da história até então, e o Steam explodiu em adoção. Como é uma plataforma e o valor aumenta a medida que mais usuários entram graças ao efeito de rede, eles precisavam lançar jogos relevantes para continuar tendo relevância.
Uma das grandes sacadas foi o lançamento do Orange Box, que era um compilado dos seus 5 maiores jogos disponíveis em uma única assinatura. Em menos de 1 ano, mais de 3 milhões de cópias vendidas e um sucesso, sendo considerado um dos melhores releases da história dos games.
Este lançamento também consolidou a Steam como distribuidora de jogos online, uma vez que era possível comprar o box apenas pela internet. Ter essa demanda massiva de jogadores fluindo para Steam foi perfeito para construir plataforma que passou a ter muito interesse de terceiros ao longo do tempo.
O momento dourado de produção de conteúdo da Valve casou perfeito com o desafio de criar uma plataforma, pois atraiu usuários relevantes. Foi um perfeito loop de crescimento para a plataforma e ele atraiu de forma perfeita o “lado difícil” da plataforma, que são os jogadores. A Valve havia descoberto algo que mudaria para sempre a indústria: quem controla a distribuição digital controla o futuro.
Vale ressaltar que o perfil de uma empresa que faz isso é ter uma relação muito próxima do cliente final, algo que estava no DNA da Valve. No site da Valve, você pode enviar email para qualquer liderança e obter respostas também.
Essa comunicação direta fez o Gaben se tornar uma lenda e é um dos traços da Valve. Um dos videos icônicos é dele visitando um fã doente no hospital:
A relação da empresa sempre foi direta e muito diferente do padrão, o que casa com a ideia de ser um distribuidor direto.
Fase 3: Orquestrador de Ecossistema.
A medida que a Steam se estabeleceu enquanto distribuidora digital, ela passou a atrair jogos de terceiros. Em apenas três anos, saltou de 120 jogos para mais de 1.000 títulos disponíveis. Eles descobriram que orquestrar era mais lucrativo que criar. Isso é comprovado na evolução de margem: em 2009 a margem operacional estava na casa dos 30% e em 2021, dobrou, atingindo 60%, o que reflete perfeitamente a diferença de ser um criador vs plataforma.
A empresa se tornou o grande pedágio e a app store do mundo dos games do PC, cobrando 30% de todas as receitas.
Mais uma vez trago o exemplo de Ben Thompson: esta transição mostra perfeitamente a evolução da "Teoria da Agregação": no mundo digital, vence quem agrega demanda, não quem controla oferta.
Toda plataforma é um país. É uma economia própria (mais de 10 bilhões movimentados anualmente), cidadãos (130 milhões de usuários ativos), leis (guidelines da plataforma), infraestrutura (mais de 100 ferramentas integradas) e até conflitos territoriais (processos antitruste atuais).
As Quatro Barreiras do Império Digital
O monopólio da Valve não aconteceu por acaso. Existe uma arquitetura estratégica por trás - quatro barreiras competitivas que se reforçam mutuamente:
1. Custo Marginal Zero Adicionar o 100.001º jogo no Steam custa praticamente zero para a Valve. Compare com a Electronic Arts, que precisa investir US$ 100-300 milhões para cada novo título AAA, ou com a própria Valve quando decide criar um jogo próprio.
2. Network Effects Compostos Cada novo jogo atrai novos jogadores. Cada novo jogador torna a plataforma mais atrativa para desenvolvedores. A plataforma já detém milhões de gamers e dezenas de milhares de jogos. É praticamente impossível (e caro) para alguém replicar essa densidade de rede.
3. Monopólio de Dados A Valve sabe exatamente quais jogos vendem, quando, para quem e por quanto tempo. Esse conhecimento permite otimizar recomendações, pricing e até decisões estratégicas de desenvolvimento próprio.
4. Ecossistema de Ferramentas Mais que uma loja, o Steam se tornou um sistema operacional completo para gaming. Workshop para mods, market para itens, chat para comunidade, broadcasting para streaming. Cada ferramenta adicional multiplica o switching cost de sair da plataforma.
Assim, o Steam se transformou na App Store mais lucrativa que poucos analisam. Em 2024, mais de US$ 10 bilhões foram transacionados na plataforma, com a receita própria da Valve atingindo US$ 3,2 bilhões.
Essa receita vem de uma tríade de crescimento bem orquestrada:
Motor 1: Conservação de Sucessos: A Valve publica poucos jogos próprios que têm sucesso, como foi o caso do Dota 2 (que era um mod também). O mais importante é que ela continua atraindo títulos com grande base de usuários para publicarem na plataforma como PUBG, The Witcher, Stardew Valley, Total War e GTA - cada jogo desse traz milhões de novos usuários.
Motor 2: Expansão de Receita por Usuário: Cada usuário passa a gastar mais ao longo do tempo. À medida que os jogos evoluíram, mais experiências foram criadas dentro dos jogos. O exemplo são as skins do Counter-Strike. Os números impressionam: O mercado de skins do CS movimentou US$ 2,3 bilhões em 2023 - equivalente a 23% do PIB do Luxemburgo. Tudo isso se traduz em aumento de receita por usuário capturado pelo orquestrador.
Motor 3: Expansão de Usuários: O mercado de jogadores de PC cresceu nos últimos 15 anos, porém desde 2021 o maior crescimento acontece graças à expansão na China. A Valve é uma das poucas empresas de tecnologia que consegue ter penetração tanto no USA quanto na China.
Hoje se fala mais chinês no Steam que inglês - uma estatística que ilustra como a plataforma transcendeu fronteiras e se tornou global.
Em termos de oferta de jogos, o ritmo é frenético: hoje se publica em 1 mês o que era publicado em 1 ano em 2014.
Riscos
Toda vez que você é o rei de um país, você corre riscos. A Valve vem enfrentando desafios em alguns aspectos:
Antitruste: A taxa de 30% enfrenta escrutínio crescente. Processos judiciais como o da Wolfire Games questionando práticas monopolísticas ganharam tração. Até vazou uma troca de emails do CEO da Epic xingando a Steam.
Tsunami de Conteúdo-IA: Com crescimento exponencial impulsionado por IA, como manter qualidade sem perder abertura? A quantidade de jogos lançados mensalmente hoje equivale ao volume anual de 2014. Isso traz um debate sobre como filtrar os jogos.
Mudança de Plataforma: Mobile gaming representa mais de 50% do mercado global. Cloud gaming pode eliminar necessidade de hardware dedicado. AR/VR podem redefinir experiências interativas. Sempre existe o risco de uma mudança de plataformas.
O futuro: A Steam sempre foi pioneira (jogos, modelo de negócios, plataforma), mas tem demorado para entregar produtos inovadores. O último foi o Steam Deck, que é um aparelho de jogos portáteis que teve uma boa receptividade de mercado, vendendo mais de 1 milhão de unidade até 2023. Ainda assim, existe uma dúvida com a empresa a medida que as lideranças envelhecem.
O ingrediente secreto de tudo isso: a cultura.
A Valve é uma empresa privada e temos acesso limitado aos seus dados financeiros. O último número público foi uma estimativa de 2021, que apontava receita de US$ 6,5 bilhões. Porém, o processo antitruste de 2021 trouxe à tona alguns dados internos que revelam a magnitude real da operação. Uma tabela vazada mostra o nível de receita por funcionário da Valve - números que superam (e muito) os peers da época. Para contextualizar: o time do Steam, cuja receita supera US$ 3,2 bilhões, detém menos de 100 funcionários. A eficiência é assustadora. Com cerca de 360 funcionários no total, a Valve supera em receita por colaborador gigantes como Google, Amazon e Microsoft. Estamos falando de mais de US$ 19 milhões por funcionário - um número que beira o impossível para qualquer empresa tradicional.
Welcome to Flatland: O País Sem Reis
Toda essa eficiência é operada através de um conceito radical: "Flatland" - um mundo sem hierarquia onde funcionários escolhem em que projetos trabalhar.
O manual de onboarding é direto: "No primeiro mês, você deve conhecer os projetos da empresa e escolher qual quer trabalhar, porque tem maior afinidade." Literalmente: você decide onde colocar sua cadeira e em que projeto investir seu tempo.
É uma filosofia muito autoral: Não existem chefes diretos, cronogramas impostos ou metas de cima para baixo. A premissa é simples: pessoas trabalhando em algo que são genuinamente apaixonadas produzem resultados superiores.
O Perfil T-Shaped: Especialistas Que Conectam
O modelo funciona porque a Valve contrata exclusivamente "T-shaped people" - uma filosofia de talento que busca um perfil específico:
World-class em uma habilidade: Especialistas de nível mundial em sua área principal.
Competentes em múltiplas áreas: Capazes de colaborar e entender contextos além de sua especialidade
Autodirecionados: Pessoas que prosperam com autonomia e responsabilidade
A ideia é que você trabalhe em algo pelo qual é genuinamente apaixonado. Toda pessoa na Valve assume múltiplos papéis: é marketing, customer development e recruiter. Todo mundo é responsável por múltiplas dimensões do negócio.
A empresa paga muito bem os colaboradores com uma filosofia clara: gere mais valor do que é pago para você. Pelo visto tá dando certo, dado o nível de receita por headcount.
Avaliação em um Mundo Sem Chefes
Como avaliar performance em uma empresa sem hierarquia tradicional? A Valve desenvolveu um sistema baseado em duas metodologias:
1. Peer Reviews: Todos avaliam todos. É um sistema de feedback 360 graus onde colegas analisam a contribuição de cada pessoa.
2. Stack Ranking: Classificação relativa baseada em quatro variáveis:
Nível de habilidade: Quão competente você é em sua área principal
Output: O que você efetivamente produziu e entregou
Contribuição para o time: Como você colabora e eleva outros
Product contribution: Seu impacto direto nos produtos da empresa
A Valve prova algo: quando você contrata pessoas excepcionais e lhes dá autonomia genuína, os resultados podem superar qualquer estrutura tradicional.
Por mais que haja poréns, é uma forma muito autoral e única de pensar em talentos. Recomendo a leitura do handbook interno que explica muito como funciona: clique aqui e leia.
O caso da Valve é emblemático e é uma historia verdadeiramente autoral e única. Nele aprendemos o valor da obsessão pela qualidade, o poder das plataformas e acima de tudo, o quanto é valido tocar uma empresa da forma que você acredita.
Obrigado pela leitura e considere compartilhar. O Sunday Drops (ou Dive) cresce somente através do boca-a-boca e adoraria ter seu apoio.
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Agradecimentos
Este conteúdo contou com a generosidade de muitas pessoas, em especial:
Ricardo Corrêa, CEO da Ramper, que nos ajudou a entender mais da Valve e sua cultura empresarial.
Gabriel Batistella, que nos ajudou a entender o mundo de games sob a perspectiva de um insider.
Artur Negrão, e todo time da Salvy, que nos permitiu gravar na linda casa Salvy em Curitiba.
Camila Abreu e Júlia Garcia por aguentarem os seus namorados falando do tema por mais de um mês e ainda terem o cuidado de revisar o texto.
MUITO bom! Façam mais!!!