👋 Bem-vindo e bem-vinda ao artigo mais recente do Sunday Drops 80 - uma newsletter (quase sempre) dominical sobre tecnologia e startups.
✔️ Se você ainda não é inscrito ou inscrita, adicione seu email abaixo e junte-se a mais de 6.400 empreendedores e investidores.
A edição 80 do Sunday Drops é especial pois tenho a honra de estrear minha primeira collab com o Rodrigo Fernandes.
Ele é uma das principais referências em análises de empresas de tecnologia e uma das minhas fontes recorrentes para discussões sobre estratégia, tech e finanças. Para acompanhar seu conteúdo e assinar sua newsletter, clique aqui.
Juntamos forças para falar de uma empresa fascinante: a Netflix.
Netflix e a Transformação do Mercado de Mídia
Durante muito tempo, os filmes seguiam todos o mesmo roteiro. Primeiro eles iam para os cinemas, depois para o pay per view, fitas cassetes ou DVDs, TV a cabo e finalmente para a TV aberta.
Nestes tempos, depois do investimento na produção ter sido feito, a decisão mais racional inevitavelmente era distribuí-lo da forma mais ampla possível, respeitando apenas a ordem lógica entre cada um destes canais.
Vale reparar que, nesses velhos tempos, a criação de conteúdo era uma peça da cadeia de valor totalmente distinta da distribuição de conteúdo. Como regra geral, quem criava não distribuía o conteúdo.
Em outras palavras, este mercado poderia ser descrito como horizontal e modular. Cada stakeholder cuidava de uma parte do processo e nenhum deles era capaz de atuar nesta cadeia de valor do início ao fim.
Uma consequência deste arranjo é que os consumidores se encontravam em um ambiente de escassez. Afinal, nenhum destes canais de distribuição era capaz de oferecer conteúdo sem uma série de restrições, sejam elas de custo, acesso ou disponibilidade.
Repare que mesmo na TV aberta, que é gratuita, há um tipo de limitação inevitável, que é a limitação imposta pela grade de horários. Em um certo horário, apenas um único filme poderia ser exibido, pouco importando a preferência de cada um dos telespectadores.
Pagando bem, que mal tem?
Com base nessa lógica de alavancagem do investimento, novos canais de distribuição como o pay-per-view e o próprio DVD eram sempre muito bem-vindos. Afinal, se há mais uma forma de faturar com aquele investimento que já foi realizado, por que não utilizá-la?
Foi dentro desta lógica de negócios que surgiu a Netflix. Com um produto que parecia ser apenas mais um canal de distribuição, o serviço de streaming da Netflix trouxe um modelo de negócios que um dia iria mudar completamente a estrutura desta cadeia de valor.
A tecnologia era nova e intrigante, mas a lógica de negócios era a mesma de sempre. A Netflix iria pagar os estúdios para transmitir suas produções pela Internet. Pagando bem, que mal tem?
Com base no relacionamento que a empresa já havia desenvolvido com os estúdios durante os seus tempos de locação de DVD, a Netflix não teve dificuldade em fazer contratos de licenciamento de conteúdo com os principais estúdios.
Se do lado dos fornecedores, o negócio fazia sentido, do lado dos consumidores a proposta também tinha muito apelo. Por um pequeno valor mensal, eles poderiam escolher entre um infinidade de produções a serem assistidas à vontade, quando e onde eles quisessem.
Quando e onde você quiser
Com a Netflix, nós entramos na era da abundância. A restrição de horário não existe mais e as possibilidades de escolha são ampliadas formidavelmente.
Ao contrário do que muitos podem estar pensando, a diferença da Netflix para a velha guarda de Hollywood não está na tecnologia propriamente dita -- mas está sim nas consequências de negócio trazidas pela adoção das novas tecnologia.
O uso da Internet fez com que a distribuição não fosse um problema para a Netflix.
Cinemas e redes de tv a cabo demandam um investimento elevado e geram um monopólio quase que natural. Um shopping não tem mais de uma rede de cinema, assim como as residências não possuíam duas ou três opções de tv a cabo.
A Netflix, por outro lado, é um canal de distribuição que fica fora das limitações dos ambientes físicos, com cabos, salas e outras instalações. Um streaming, por definição, está na Internet, aquele ambiente com custo marginal e custo de distribuição próximos de zero.
Muito além de um canal de distribuição
No entanto, a Netflix tinha um sério problema. Por mais que a empresa de Reed Hastings tivesse saído na frente e criado o melhor produto de streaming, não impedia que os próprios estúdios criassem soluções semelhantes à própria Netflix.
Assim, em um gesto ousado por parte da empresa, antes que os estúdios resolvessem criar os seus próprios streamings, a Netflix resolveu criar o próprio conteúdo. De fato, estava se tornando inevitável que em algum momento um player entrasse no mercado do outro.
Desse modo, em 2012 a Netflix lançou seus primeiros conteúdos próprios e assim deu início à transformação de toda uma indústria. Como disse Benedict Evans, a Netflix percebeu que tecnologia importa, mas que é fundamentalmente uma commodity.
No final das contas, as questões que mais importam neste mercado são as questões relacionadas à cadeia de valor da própria televisão.
A tese da Netflix era de que com a sua escala (que gera poder de compra), eles poderiam investir em produções de forma pesada, assim aumentar ainda mais sua escala e ter um retorno superior vendendo diretamente para o consumidor ao invés de passar por middlemens.
Pela primeira vez, um (até então) distribuidor de filmes e séries passou a desempenhar também o papel de dono do conteúdo. Uma indústria que havia sido sempre horizontal começou a ganhar ares de verticalização.
De Horizontal para Vertical
Desse modo, a lógica da indústria vai começando a se alterar e a velha lógica de se buscar a distribuição mais ampla possível vai deixando de ser necessariamente o melhor caminho para quem detém os direitos de uma produção.
Afinal, não faria sentido distribuir em tudo quanto é lugar uma produção que tenha sido feita justamente com o objetivo de criar diferenciação. Agora, a exclusividade começa a se tornar uma peça importante deste xadrez.
Facilmente, produções de alto nível demandam um investimento na casa das centenas de milhões. O custo de oportunidade inerente à escolha de não licenciar os direitos para cinema, televisão e outros canais era elevado, mas outros fatores estavam em jogo.
A expectativa era de que o número de assinantes que poderia ser alcançado pelo streaming chegaria a uma escala tão elevada que a perda dos outros canais de distribuição seria recompensada pela atração e retenção de clientes.
De Vendas para Clientes
Toda empresa baseada em assinaturas morre ou vive por conta de LTV/CAC. Teoricamente, a atração e retenção de clientes aumentaria na medida em que as pessoas só pudessem assistir algumas das séries de sucesso na própria Netflix.
A princípio, a hipótese realmente fazia sentido. Mas o ambiente de abundância e liberdade da Internet não se apresentou como uma oportunidade apenas para a Netflix, esse ambiente também se mostraria como uma ameaça para a gigante do streaming.
Além de todas as opções de conteúdo e da concorrência que inevitavelmente chegaria, o novo modelo de streaming precisa mostrar uma habilidade enorme em atrair e reter clientes nos seus serviços.
No modelo anterior, já havia esse desafio em algum nível na TV a cabo, por exemplo. Mas agora, a o lock-in desaparece e as opções se tornam cada vez mais variadas.
O cancelamento de um serviço é uma questão trivial. A contratação de um outro serviço também. Os assinantes podem se dar ao luxo de cancelar um serviço durante um período em que eles estejam sem tempo para utilizá-lo.
Quanto vale o acervo?
Para piorar, existe uma dinâmica neste mercado que faz com que uma biblioteca volumosa como a da Netflix não seja um ativo tão relevante assim. Este é um mercado muito movido pelo 'buzz', pelo assunto da moda.
Diferente do mundo da música, no qual o usuário escuta a mesma música diversas vezes, poucos são os espectadores que assistem repetidamente ao mesmo filme e série.
Pouco importa se você tem uma infinidade de opções na Netflix, se todo mundo no seu trabalho só fala sobre o último episódio de The Last of Us, da HBO. Uma única série de muito sucesso pode fazer com que um streaming se torne mais atrativo que outro, que já fez dezenas de séries de sucesso.
A combinação dessa dinâmica do mercado audiovisual, em que as produções sofrem uma depreciação extremamente acelerada e ao mesmo tempo não há dificuldade em pular de um serviço para o outro criou um ambiente altamente desafiador para quem se aventura neste mercado.
Muito mais que um patrimônio que fica na plataforma, as produções de sucesso ganharam uma dimensão de aquisição e retenção de usuários. Quando essas produções são lançadas, as plataformas conseguem atrair e reter mais assinantes. Quando elas não chegam, tudo fica bem mais difícil.
O sucesso de conteúdo não é previsível
O problema é que este é um processo caro e imprevisível. Não existe um lean manufacturing no mundo que possa garantir que toda produção será feita sem defeitos.
De fato, já houve uma época em que esta era uma possibilidade que era levada a sério. House of Cards teria tido um auxílio do 'big data' da IBM para que fosse feito de uma forma que agradasse ao público. Grande ilusão.
Se os dados de usuário processados por alguma inteligência tivessem sido capazes de criar sucesso atrás de sucesso, a Netflix poderia ter efetivamente entrado em uma espiral de sucesso que ninguém seria capaz de alcançar.
Infelizmente para ela mesma, a Netflix organizou as bases para a criação de um mercado que demanda um sucesso depois do outro para se sustentar. Para piorar, não raro grandes investimentos são feitos em produções que não dão retorno nenhum.
Deste modo, boa parte do retorno gerado pela Netflix precisa ser reinvestido em novos conteúdos para que a roda possa continuar girando, uma situação que se encaixa muito bem em uma famosa citação de Charlie Munger:
"There are two kinds of businesses: The first earns 12% and you can take it out at year's end. The second earns 12%, but all excess cash must be reinvested. If an owner points to their equipment and says, 'There's all of my profit', well, we hate that kind of business."
Ainda tem a concorrência
Por fim, nós temos a chegada de grandes players como Amazon e Apple para complicar ainda mais o jogo. Mas para eles, o jogo tem um regra um pouco diferene.
Ao invés de se matarem para ter melhores níveis de aquisição e retenção de clientes no próprio streaming, eles chegam usando o streaming principalmente para obter maiores níveis de aquisição e retenção nos seus outros produtos.
Para Amazon e Apple, streaming é mais um meio do que um fim em si mesmo. Deste modo, a necessidade de gerar caixa é secundária para estes negócios. Estas empresas enxergam os seus serviços como uma linha de marketing ou de engajamento de produto.
Se o Prime Video for um motivo relevante para se ter uma assinatura do Prime, sua missão terá sido cumprida. O valor de um cliente leal é o que importa, mesmo que o preço dessa lealdade seja o investimento em filmes e seriados, algo impensável para um marketplace.
Um mercado ainda em evolução
Com todas essas fragilidades, qual seria o destino deste mercado? A consolidação de alguns dos players e a redução do investimento parecem ser caminhos já muito claros.
Aliás, recentemente o mercado tem falado muito sobre a possibilidade de uma compra da Disney pela Apple. Não acreditamos muito nessa possibilidade. De todo modo, o nível de especulação dá uma dica de como o futuro deste mercado tem sido visto.
Além do mais, a opção de fazer produções exclusivamente para o streaming sem presença e nos cinemas e outros canais de distribuição tem se mantido como estratégia clara apenas no caso da própria Netflix -- e não sabemos até quando.
Por fim, de alguns meses para cá, a publicidade nas plataformas de streaming começou a se mostrar muito mais como regra do que a exceção. Essa opção andou se mostrando tão interessante que a Netflix escondeu e agora retirou totalmente a sua opção de plano basic sem ads.
Transmissão de esportes é uma outra opção que está se tornando cada vez mais comum entre as plataformas de streaming, principalmente Amazon e Apple. Aliás, a Apple merece uma referência especial com o arranjo que fez entre Apple TV+, Major League Soccer e o jogador Leonel Messi.
Não vai ser fácil
Talvez essas adaptações façam com que o streaming se torne um negócio um pouco mais saudável do que ele se mostrou até aqui. Mas enquanto o modelo de streaming independente depender da realização de produções muito acima da média para que ele possa se manter, fica difícil ser otimista.
Um paralelo que nos parece fazer sentido é a indústria de aviação. Ela é uma indústria dinâmica, que está sempre crescendo, tem um addressable market gigantesco, é bastante lucrativa em alguns momentos, mas é obviamente ruim quando olhamos para o mercado como um todo em perspectivas de prazo mais longos.
Como disse Warren Buffet na última conferência da Berkshire:
"Streaming is not a really good business…. they attract subscribers at a terrible price".
Muitas vezes, a tecnologia tem o efeito de aumentar a eficiência de uma indústria, qualidade dos produtos que são desenvolvidos por ela gerando assim beneficios para o consumidor final. Por consequência, a tecnologia pode mudar completamente a configuração de um mercado.
Com a sua competência e visão de mercado, a Netflix conseguiu capturar muito valor deste novo mercado. Aliás, o papel da Netflix foi um dos que mais performaram nestes últimos 20 anos, mas é difícil apostar que este filme se repetirá. De fato, essa captura de valor aconteceu principalmente enquanto não havia concorrência, uma época em que, nas palavras do próprio fundador, não havendo concorrente à sua altura, a Netflix competia contra o sono ou contra o jogo Fortnite.
É verdade. Toda vez que alguém está fazendo algo diferente de entretenimento virtual do que assistindo a nova temporada de Stranger Things, você está perdendo para um competidor. Neste grupo podemos ver os videogames, TikTok, Youtube mas também as várias plataformas de streaming que apareceram nestes anos.
Isto se reflete nas altas taxas de churn que as plataformas de streaming têm enfrentado. De acordo com um estudo da Deloitte nos Estados Unidos, 44% dos usuários disseram ter cancelado alguma assinatura de streaming nos últimos 6 meses.
Com a maturidade do mercado e uma vantagem competitiva que não está se mostrando tão relevante quanto se imaginava, a empresa não terá outra opção senão lidar com as regras duras de um mercado que ela teve a ousadia de criar.
A Netflix é a pioneira e também a vencedora incontestável da briga pelo mercado de streaming. Mas será que essa é realmente uma batalha que vale a pena ser disputada? Será que o prêmio que foi dado até aqui também será oferecido no futuro?
Infelizmente, o investimento necessário para brigar contra novos entrantes que não dependem de streaming e contra outras formas de entretenimento digital nos faz pensar que a próxima temporada da Netflix será bem mais dura que a temporada que se encerrou agora.
Se considerou o artigo valioso, compartilha!
E se gostou do texto, para receber textos quase todos os domingos sobre tech, startups e estratégia.
Acompanhe os conteúdos do Rodrigo neste link abaixo: